Tuesday, August 05, 2008

BILLIE HOLIDAY
MY MAN
"Um jantar que deveria ser um dos melhores de todos os tempos acaba por se tornar uma ode à tristeza."


Sobre os pratos me desfaço. Sabe, sempre me preparo e espero em vão, eu sei que não virá, e mesmo assim padeço, tenho que jogar fora a comida, limpar a louça, os copos, os talheres e guardá-los no armário. Apago a luz da cozinha e vou me deitar, enquanto me ajeito, me penteio, arroto o frango que fiz com tanto carinho.

Janto sozinha à meia-luz.
Apago.

Acordo e afundo as unhas no colchão. Olho para o telefone, prevejo ligações que não receberei. Molho o rosto, escovo os dentes, apalpo os seios moles, subo na balança, bocejo. Seu sapato sujo ao lado da cama. Caminho até à porta, pego as correspondências, os jornais, prevejo cartas que nunca me serão enviadas. Sento-me à mesa, leio uma notícia ou outra, requento o café de dois dias, sua xícara jaze dentro da pia, mordisco um biscoito, o cachorro que não tenho late. Misturo um pouco de uísque ao café, me dá vontade de beber mais, misturo um pouco de café ao uísque. Fumo meu primeiro cigarro, os livros invisíveis na estante estão empoeirados. Levanto-me, tiro-lhes a poeira, sento-me. Olho para o telefone. O telefone que tenho não toca.
Fumo meu segundo cigarro, ponho o lixo na calçada, limpo a casa do cachorro, arremesso as sujeiras dele no canto da cerca, arroto frango, café e uísque. É meio-dia. Almoço apenas tomate e alface, meu estômago queima há dias, não sujo nada, tudo bem guardado de noite o aguarda. Ligo a televisão e nada me entretém. Ligo o rádio sem pilha nem tomada, ouço nossa música. Fecho as cortinas da sala. Escuro. Fumo um terceiro cigarro. O estômago pulsa, parece coração. Ele queima. São três da tarde. Deito-me no sofá e estico as pernas, afago minhas coxas, a música se repete, penso no jantar, fumo o quarto, quinto, sexto cigarro, limpo o cinzeiro e são cinco horas. Escolho a receita que consta no meu antigo livro. Separo os ingredientes.
Disse-me que chegaria às oito. Espero. Tomo um banho, lavo o sexo, visto um robe. Pinto os lábios, não me perfumo, não me enfeito. Vou para a cozinha.

Amando faço o arroz, o feijão, pico com as mãos a salada num refratário, mastigo algumas folhas, fumo o sétimo cigarro, bebo uma dose de uísque. Tiro o arroz e o feijão do fogo, grelho o peixe. Espalho por ele algumas ervas, alecrim, manjericão, o enfeito
Faço a mesa, disponho as taças, os talheres, os pratos, as comidas. Subo.

Enfeito-me, perfumo-me. Admiro-me. Desço.

Sete em ponto. Tiro o vinho da geladeira, saco a rolha, sirvo-me. Sete e meia. Fumo o oitavo cigarro, cruzo as pernas, tiro as sandálias, ponho-as novamente.

Oito da noite.

Nove.

Meia-noite.

Sobre os pratos me desfaço. Sabe, sempre me preparo e espero em vão, eu sei que não virá, e mesmo assim padeço, tenho que jogar fora a comida, limpar a louça, os copos, os talheres e guardá-los no armário. Apago a luz da cozinha e vou me deitar, enquanto me ajeito, me penteio, arroto o peixe que fiz com tanto carinho.

Vivo sozinha à meia-luz.

Apago.

No outro dia estou afundando as unhas no colchão, olhando para o telefone, prevendo ligações e cartas, afagando as coxas, fumando, bebendo, limpando, servindo o jantar, me desfazendo do jantar, arrotando. Antes de me deitar aperto contra o peito seu sapato e sua xícara, sinais de que um dia você existiu. Amanhã virá. Padeço. E apago-me, cansada.

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